Bom dia a cada uma das senhoras e a cada um dos senhores. Cumprimento, pela praxe, o Presidente Renan Calheiros. Mas, antes mesmo de, pela praxe, saudar cada um dos membros da Mesa, não por falta de respeito, mas por uma questão de reconhecimento, quero citar uma pessoa que não está aqui porque nos deixou há três semanas: Tatiana Memória. Tatiana Memória acompanhou Darcy, e, depois que ele se foi, construiu a Fundação Darcy Ribeiro. Tatiana gostaria muito de estar aqui conosco. Mais do que qualquer um de nós, mereceria estar aqui conosco. E cito seu nome para que ela esteja presente. Creio que podemos dedicar a Tatiana Memória esta homenagem ao Darcy Ribeiro, porque ele ficaria muito feliz. Cumprimento cada um dos Srs. Ministros, que honram a todos nós com sua presença, o Ministro Carlos Ribeiro, o Ministro Carlos Ayres Brito, o Ministro Gilmar Mendes, meu amigo Pertence, e, obviamente, ao meu chefe e patrão, Reitor da Universidade de Brasília, meus cumprimentos ao professor Timothy. Há duas maneiras de fazer política: uma é pelo poder; a outra é pela história. Darcy fez política pela história. O poder era o meio, o meio que ele usava para deixar suas marcas na História deste País e do resto do mundo. Por isso, a homenagem a um homem como Darcy Ribeiro deve ser feita falando do seu legado para a História, porque ele deixou, sim, um legado para a História. E um legado amplo, que, como se pode ver, não está limitado apenas a uma ou a outra ação, a um ou a outro campo. Darcy deixou, por exemplo, o legado incrível de criar uma universidade nova – e não qualquer universidade –, uma universidade como a de Brasília, que representou, no seu início, um sonho alternativo para os modelos universitários da época. Hoje, todos sabemos que a universidade, como instituição, está ficando velha e precisa ser renovada. Darcy Ribeiro previu isso, Senador Jefferson Péres, há quase cinqüenta anos. Percebeu que a universidade, que nascera quase mil anos antes para enfrentar a paralisia dos conventos na geração do saber, que era vista como centro dinâmico do pensamento, precisava de uma reforma, de uma revolução, e criou a UnB. Esse legado perdura e cresce a cada momento. Deixou um legado científico, citado pelo Presidente Renan Calheiros, que é uma marca não apenas para a cultura brasileira, mas para a cultura mundial. Por meio de sua vivência com povos indígenas, numa época em que não havia esse sentimento de defesa da diversidade e índios eram vistos como atraso, ele viveu com eles, escreveu sobre eles e deu uma contribuição mundial para entendermos como essa sociedade, essa parcela do Brasil, funciona, vive e produz. Deixou também uma obra literária, menos conhecida, mas que merece ser mais divulgada, com seus livros de ficção. Isso mostra, já aí, uma qualidade ousada, porque, no Brasil, cientista faz ciência e literato faz literatura. Ele enfrentou todo o aparato científico dizendo: “Eu faço também ficção”. Deixou, como legado, algo que seria inimaginável em um homem com aquela visão, que tinha o respeito de todos que participavam do pensamento mais alto da elite: ele deixou um sambódromo, um produto para atender à forma simples da cultura popular. Imaginar aquele sambódromo já era algo realmente especial, mas imaginar a urgência e a importância dele era mais especial. E, com aquilo, ele mudou até o carnaval. Quem no mundo pode se orgulhar, em vida, de ter mudado a universidade e o carnaval? Ninguém, porque realmente só Darcy foi capaz de ter essa diversidade. Mas não foi só isso. Ele deixou como legado também até aquilo em que fracassou, porque dizia que, às vezes, se orgulhava mais do fracasso de muitas das suas ações do que das realizações. As realizações mostravam que, naquele momento, suas idéias e sua competência executiva davam frutos, mas os fracassos, muitas vezes, deixavam a marca maior de uma coisa chamada coerência. Se fracassou é porque foi coerente, e o que defendia não estava ainda na hora de se tornar realidade. Não abriu mão, não concedeu, reduzindo suas aspirações e suas defesas, para se ajustar aos momentos. Ele estava na frente e, por essa razão, às vezes não conseguia fazer aquilo que devia, que podia e que queria. E aí incluo sua ação junto do Ministério da Reforma que, no tempo de João Goulart, tentou mudar este País, fazer com que as reformas de base fossem realizadas. Se tivessem sido feitas, o Brasil teria dado uma direção completamente diferente ao seu futuro trágico de hoje. Por isso, minha primeira fala é sobre o legado de Darcy Ribeiro, o legado que nos deixou nas obras que conseguiu realizar e naquilo que tentou fazer do lado certo, mas não obteve êxito porque o momento não o permitia. E ele preferiu cair, ir para o exílio a ceder às tentações, que são muitas, de deixar a História e ficar com a política do poder. Essa opção de ficar com a História e não com o poder é um legado pelo exemplo que Darcy Ribeiro nos deixa. Mas Darcy foi diferente, ele não deixou apenas um legado, ele deixou um exemplo, porque alguns fazem política e deixam apenas lembranças de que passaram pelo poder; outros fazem política e deixam um legado pelo que fizeram; raros deixam um exemplo pelo que foram. Darcy Ribeiro nos deixou um exemplo. Um exemplo da complementaridade entre a sua obra e sua vida. Como disse o Presidente Renan Calheiros, ele, em vida, já era um mito, pelo seu exemplo, pelo que fazia, pela maneira como vivia plenamente cada dia, por aquilo que não abria mão de ser. Muitos de nós, para fazermos, abrimos mão de ser. Ele não abria mão. Ele foi, ele fez, ele tentou. E, nisso que ele tentou, aí fica talvez a única falha que não foi sua culpa, de ter nos deixado dez anos atrás. Creio que nesses exatos dez anos e nós próximos dez é que seu pensamento, de fato, seria revolucionário, porque o Brasil começa a descobrir agora que aquele discurso de que a educação era o vetor da mudança era verdadeiro. Que falta não faz Darcy Ribeiro neste momento! Se pudéssemos tê-lo, com seu charme, defendendo aquilo que, agora, começa a tocar a consciência das pessoas, o imaginário do Brasil, aquilo que ele dizia, na época em que todos pensavam que o movimento vinha das engrenagens das indústrias e não do enriquecimento da inteligência; que vinha de garantir emprego, mesmo a analfabetos, e não de educar aqueles que eram analfabetos! Darcy foi um profeta do ponto de vista do desenvolvimento civilizatório, porque, hoje, creio que todos estamos chegando à idéia, ao acordo de que o progresso não vem da ordem, o progresso vem da educação. O progresso não vem do chão de fábrica, vem dos bancos de escola. Não é mais uma questão de luta de classe, de contrários, de uma dialética, fazendo com que o mais forte vença o mais fraco. É tempo de uma convergência, fazendo com que todos convivam. Não é mais questão, hoje, de a gente dizer, como se dizia antes, que uma revolução acabaria com os ricos. Hoje é hora de dizer que a revolução acaba com a falta de educação. Darcy Ribeiro era isso, só que no momento em que isso não era aceito como o vetor correto do progresso civilizatório. Ele viveu no momento da industrialização como o grande projeto para o Brasil, e não a educação como o grande projeto. Por tudo isso é que estamos, hoje, lembrando Darcy e sentindo falta dele. Ele aqui iria nos ajudar a derrubar os dois muros que emperram o Brasil: o muro do atraso e o muro da desigualdade. O muro do atraso não nos deixa ser um país igual aos desenvolvidos, por falta de ciência e tecnologia. O muro da desigualdade não nos deixa quebrar essa maldita desigualdade perversa de cinco séculos, porque só a educação, só a escola é que nos permitirão derrubar o muro. Não vamos derrubar os muros com economia; vamos derrubá-los com educação. Darcy nos faz essa falta, porque ele nos deixou há dez anos, e, por isso, vai continuar sendo lembrado. Quero encerrar, fazendo uma pequena lembrança específica da partida dele. Talvez mais do que ninguém, Vera Brant, presente, tenha acompanhado tudo isso. Darcy Ribeiro, além de todas as outras vantagens, teve o mérito de ter lutado ferrenhamente para continuar vivo, chegando até a propor a sua querida amiga Vera Brant trocar com ele de lugar e ficar no hospital com câncer, para que ele pudesse viver, criando, produzindo. Darcy Ribeiro lutou até o fim. Essa luta tem um dado que talvez poucos conheçam. Creio que tenha sido numa sexta-feira, eu telefonei ao Hospital Sarah Kubitschek, onde ele estava, e marcamos para conversar na segunda-feira, na casa dele, de tão otimista que ele estava. Naquele dia – quero encerrar, mencionando o lado do seu legado de que ainda não falei –, que creio foi uma sexta-feira, Darcy Ribeiro disse a uma grande profissional do Hospital Sarah Kubitschek, a Drª Lúcia, Lucinha, como ele a chamava: “Eu preciso desesperadamente dar uma aula, mas eu quero dar aula a uma criança, me arranja uma criança”. E a Lucinha, que não pôde vir hoje aqui, levou o filho Felipe, que tinha 10 anos, e Darcy Ribeiro deu uma aula de Antropologia para o menino. E, nessa aula – ela lembra e o menino nunca vai esquecer –, entre as coisas para mostrar o que é uma sociedade, ele mostrou porque é preciso fazer uma universidade e um sambódromo, porque um é a cultura da elite e o outro é a cultura do povo. E esse casamento, ele dizia a um menino de 10 anos, é aquilo que é preciso fazer no Brasil. Ele terminou a aula, tomou banho, barbeou-se, como me disseram, colocou perfume – porque era vaidoso, como Vera deve saber –, deitou-se, entrou em coma e morreu poucas horas depois. O homem que fez tanta coisa morreu como professor, por opção dele. Morreu como professor de crianças, por opção dele. E o que parece um rebaixamento – professor de criança –, na verdade, é a elevação máxima que ele percebeu, certamente inconsciente, a elevação máxima de quem está na véspera de entrar para a História, porque ele foi um político da História, não do poder. Por isso estamos nos lembrando dele agora, porque a História é que mantém viva a memória de cada um de nós que faz política. O poder passa, o legado fica. Darcy deixou um legado. Por isso, nós o estamos, hoje, homenageando aqui. Daqui a dez anos, vamos estar comemorando os vinte anos; daqui a cem, certamente, poucos de nós aqui – se é que algum vai estar aqui, Presidente Renan –, prestando homenagem a este que, como V. Exª disse, ainda em vida foi um mito e, depois da morte, é um mito cada vez maior e mais oportuno. Era isso o que tinha a dizer, Sr. Presidente, não como Senador, mas como discípulo, que aprendeu com ele que o Brasil pode ser visto de maneira diferente da que os estrangeiros nos ensinam, que o futuro do Brasil pode ser tentado, Presidente Collor, de maneira diferente do que é a tendência, Senador Dornelles. Ele ensinou. E a minha fala é para o meu professor. Disse uma vez, quando colocamos o nome dele no campus da UnB, que, quando eu crescesse, queria ser Darcy Ribeiro. De lá para cá, eu cresci, e descobri que não vai dar tempo, mas que muitas crianças brasileiras, eu espero, consigam um dia, quando crescerem, ser Darcy Ribeiro.
Escrito por: Neblina Orrico - neblina@senado.gov.br
terça-feira, 27 de março de 2007
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